
Em Bom Sucesso, Ramon, o personagem de David Junior, deixou Paloma (Grazi Massafera) e a filha do casal, Alice (Bruna Inocêncio), no Brasil e foi atrás do sucesso profissional nos Estados Unidos. Depois de 16 anos ele decidiu voltar e a conta chegou: além de ter de reconstruir a relação com a jovem e tentar reconquistar a mulher, o público não perdoa o abandono paterno. “Eu ficava muito na defensiva, querendo defender o personagem. Depois eu entendi a gente precisa tocar na ferida mesmo. Existe uma revolta e ela é pertinente porque o que tem de mulher que é mãe solteira porque o pai faz, mas joga a responsabilidade na mulher, não é fácil”, admite o ator.
Interpretar um pai na ficção aguçou ainda mais a vontade do ator de ter um filho na vida real. “Sempre tive vontade de ser pai. Gosto muito de criança, adoro rolar com criança no chão. Hoje acho que só estou admitindo mais isso, até com os problemas, já que todo mundo, quando falo a respeito de paternidade diz assim: ‘não é mole, não’”, diverte-se ele, que há quatro meses vem experimentando com o buldogue francês Noah, de 4 meses, o que é “ter um ser que depende de você 24 horas e dá amor o tempo inteiro”. “É uma comparação péssima, mas eu tenho visto um pouquinho do que é essa relação”, diz o ator, que é casado com Yasmin Garcez, a Fairouz de Órfãos da Terra.
Na trama, Ramon disputa o interesse de Paloma com Marcos (Romulo Estrela), e, ao contrário do que já aconteceu no passado com outros casais inter-raciais, David não sentiu qualquer forma de preconceito pelo romance. “Até agora não, mas eu procuro não me alimentar dessas coisas. O racismo no Brasil é um problema dos brancos, não é um problema dos negros. Eles que precisam resolver. Eu só preciso me municiar para não sofrer essa opressão”, explica o ator, que se identifica com o roupeiro do Chicago Bulls.
“É a primeira vez que faço um personagem periférico, uma pessoa como eu sou. Tem tem sido muito muito gratificante fazer um personagem que eu posso sentar na calçada, tacar uma pedrinha no chão e voltar a fazer coisas que eu fazia quando eu morava em Nova Iguaçu”, diz David, que nasceu e cresceu no município da Baixada Fluminense.

Você conhece alguém que foi vítima de abandono paterno, como a Aline foi abandonada pelo Ramon?
Conheço muito, ainda mais no universo periférico em que a gente vive. O que mais tem é isso. O pai da minha melhor amiga viveu até se aposentar no Nordeste. Ele viveu lá 20 e poucos anos, e a esposa aqui com a filha morando em Nova Iguaçu. Vinha uma vez no ano, vinha sei lá quando, dava dinheiro e estava tudo certo. Ele se achava presente porque pagava as contas da casa, pagava as prestações, pagava o mercado. Para ele, até hoje, ele é suficiente.
E tem muita gente que pensa assim....
Sim! Precisamos falar disso, precisamos colocar na cabeça do homem que não só com dinheiro que ele precisa estar presente. Precisa estar presente no cotidiano, na troca de fralda, no banho, no buscar na escola. Ele tem que estar presente na vida da criança porque senão ela cresce sem essa referência de afeto. A criança vai entender que precisa só dar dinheiro; aí cresce um homem doente e achando que é só isso que tem de fazer também. A gente precisa parar de reproduzir esses homens e começar a falar do novo homem certo.
Fazer a novela fez bater a vontade de ser pai?
Não tem essa coisa de bater a paternidade. Sempre tive vontade de ser pai. Gosto muito de criança, adoro rolar com elas no chão. Hoje acho que só estou admitindo mais isso. Até com os problemas. Quando falo a respeito da paternidade todo mundo diz assim: ‘não é mole não!’ (risos).

E aí?
É muito louco porque é uma comparação péssima que vou fazer, mas estou com um cachorro filhote em casa (o buldogue francês Noah, de 4 meses). Sempre criei cachorro do lado de fora, morava em casa, e ele ficava no quintal. É a primeira vez que tenho uma relação com um animal dentro de casa e que depende 24 horas de mim. Para sair é uma função, precisa ter uma bolsa, levar ração, fralda, brinquedo... Vejo e falo: ‘caraca, bicho, que trabalho! Imagina um filho’. Aí você está com o cachorro e, do nada, ele faz xixi aqui, faz xixi ali, faz xixi lá ali e você fica 'meu Deus, que saco'. Mas deu cinco minutos, ele vem e começa a lamber meu queixo, e eu digo 'esqueci tudo que ele fez' (risos).
Então já deu para ver um pouco como é...
Essa relação está muito legal. Eu tenho um visto um pouquinho (ênfase) do que é isso, de ter um ser que depende de você 24 horas e dá amor o tempo inteiro, que se você fica longe ele sente falta e que você também sente falta. Às vezes eu estou aqui e penso: ‘sacanagem, não vou estar lá’.
E como é fazer as cenas de paternidade em Bom Sucesso? Tem alguma que te marcou mais?
Tem uma cena incrível com a Bruna na preparação da novela, a primeira que trabalhamos em família. Tivemos uma catarse emocional. Ela falou tudo o que queria falar enquanto filha abandonada, e eu recebi calado. E dali a gente fechou um elo, uma aliança de pai e filho mesmo. Eu tenho um carinho e um amor muito grandes pela Bruna, nos identificamos muito nas questões políticas e tudo o que acreditamos no mundo. Também temos uma cena, que vai ao ar, em que a gente para e conversa. ‘Pô, beleza, é isso. A gente é pai e filha. O que vamos fazer com essa informação? Precisamos conviver’. E há um acordo de paz, simbólico.

O que você tem do Ramon?
É a primeira vez que faço um personagem periférico, uma pessoa como eu sou. Então pra mim tem sido muito muito gratificante fazer um personagem que eu posso sentar na calçada, tacar uma pedrinha no chão e voltar a fazer coisas que eu fazia quando eu morava em Nova Iguaçu (município da Baixada Fluminense).
Por exemplo?
É ver o vizinho e saber que esse cara me conhece desde pequeno, trocar ideia com o cara da padaria, passar e zoar alguém que está na farmácia. Coisas que quando a gente passa a morar em prédio perde essa referência, perde essa proximidade com o outro que o subúrbio tem muito. No bairro em que morei, conheço todo mundo, da primeira, da segunda, da terceira, da quarta, da quinta rua. A gente se relacionava, fazia festa junina e todo mundo se reunia pra fazer bandeirinha e botar nos postes, fazer fogueira. Bom Sucesso apresenta essa relação de pessoas em que todo mundo conhece todo mundo.
Casais inter-raciais nas novelas já foram vítimas de preconceito. Isso acontece com Ramon e Paloma?
Até agora não, mas eu procuro não me alimentar dessas coisas. O racismo no Brasil é um problema do branco, não é um problema do negro. Eles que precisam resolver. Eu só preciso me municiar para não sofrer essa opressão. Até agora o que eu tenho visto é uma galera falando pela relação e não pelo fato de ser branco, ser preto. Não entraram nesse mote aí. Mas é óbvio essa construção se dá porque a nossa a nossa sociedade foi construída dessa forma. Estamos apresentando um personagem que é um sujeito, ele não se coloca como um objeto. Ele tem uma vida, uma personalidade, uma profissão, ele tem uma demanda que ele precisa cumprir.

Diante da história passada deles, o casal Paloma e Ramon é bem aceito?
Existe uma revolta (com a situação). Eu ficava muito na defensiva, querendo defender o personagem. Depois eu entendi a gente precisa tocar na ferida mesmo. Existe uma revolta e ela é pertinente porque o que tem de mulher que é mãe solteira porque o pai faz, mas joga a responsabilidade na mulher não é fácil. O assunto é esse. Existem homens assim, tóxicos, que acham que só por ser o provedor já é suficiente e não precisa de mais nada. Tem sim, tem muita gente revoltada, mas tem muita gente que torce por eles também. Mas a maior história de amor dele foi com a Paloma e a filha. Antes de saber que ela não ia mais morrer, ele disse que, independente do que acontecesse ou da escolha que ela fizesse, ele estaria do lado dela. Se ela decidir amanhã estar com o Marcos, Ramon estará do lado dela, porque ele sabe toda a falta que ele fez nesses 16 anos.
Como você vê o triângulo amoroso Ramon-Paloma-Marcos?
Não vejo como competição. O ser humano vive isso o tempo inteiro, a gente se apresenta para o outro, dá o melhor, e a escolha é de cada um. A Paloma vive uma relação bem complexa porque um personagem, o Ramon, tipifica a realidade da vida, pé no chão. O outro, o Marcos, é o lúdico, com essa relação utópica de uma pessoa que vem de uma família menos favorecida e conhece o príncipe encantado. A escolha não é só dela, como do público. Mas não estou muito preocupado com isso, acho que a novela já é um sucesso porque a gente está apresentando humanidade.
De que forma?
Tem coisas que a gente está falando que são urgentes, como a questão do abandono paterno. Isso tudo faz parte do patriarcado, da masculinidade tóxica, de tudo que a gente precisa desconstruir urgentemente, o que tem causado esse feminicídio no mundo afora. Aque a gente precisa apresentar um novo homem pra sociedade e a dramaturgia brasileira tem esse poder.

Você também está em Sessão de Terapia, série com Selton Mello exibida no Globoplay. Fale um pouco de seu personagem...
Sessão de Terapia é um produto à parte. É gente falando de gente para gente. Você coloca duas pessoas, uma diferente para a outra e se desnudando, falando das suas complexidades. Meu personagem, o Nando, vem pra falar de racismo e machismo. Ele apresenta essas duas opressões ao mesmo tempo. É um homem negro falando a um homem branco todas as mazelas que ele vive diariamente. É bem puxado e ao mesmo tempo é bem urgente. E Nando se acha acima da mulher simplesmente porque ele é um cara bem sucedido profissionalmente. Mas quando deixa de ser o centro, as coisas começam a mudar internamente.
O que acontece?
Ele começa a achar que não é suficiente para mulher e aí vem a impotência na cama, o que para o homem é o fim do fim do fim. Você tem que dar sempre conta, se a mulher quiser você tem que estar ali disponível. Isso tudo faz parte de uma construção patriarcal que a gente aprendeu desde lá atrás, que constrói pessoas doentes. Constrói homens doentes que acabam deixando mulheres doentes e criando uma relação cíclica de filhos doentes. E falamos sobre a opressão da mulher negra, que é a base da opressão social. É muito importante falar disso hoje.
