“O que você quer que eu faça?”, pergunta Laura Cardoso ao fotógrafo Angelo Pastorello ao se preparar para o ensaio, em São Paulo. Passadas as referências, ela coloca as mãos delicadas sobre os olhos e encobre parte de seu rosto. Por segundos, Laura respira, concentrada. Seus dedos descem à mesa e a mulher que há mais de 70 anos encarna personagens marcantes na dramaturgia brasileira ressurge. Entre olhares penetrantes, sorrisos e caretas, ela entrega em uma hora um ensaio com quatro looks.
“Tem que dar importância e valor ao personagem e ao texto que te dão. Não existe isso de ser a estrela da novela. Nunca me importei em ser a protagonista. Todo o personagem me faz pensar, dedicar tempo e estudo. Não tenho critério para escolher personagem. Digo que nunca escolhi. Gosto deste desafio de fazer o que te dão para fazer, de pensar: ‘será que eu vou conseguir fazer?’. Esse desafio me move!”, explica ela, Apenas da televisão, a atriz soma mais de 80 participações em produções, entre elas, Isaura, a mãe que amava mais uma filha que a outra, de Mulheres de Areia (1993), a cigana Soraya, de Explode Coração (1995) e a avó trapaceira Dona Sinhá, em Sol Nascente (2016).
Laura não recusa ideias da equipe e não mostra cansaço. Até na cabeça do sofá, a atriz sobe para um clique. “Às vezes acho que tenho 20 anos”, solta ela.
Atualmente com 91 anos, a paulistana do Bixiga vive em um apartamento na zona oeste de São Paulo com a filha Fernanda, de 55 anos. Fátima, de 61, sua primogênita, vive no andar de cima. Quem imagina que fora das telinhas, ela é uma senhorinha passiva, meiga e tranquila está enganado. “Sou brava”, brinca sobre sua personalidade forte. Laura comanda tudo em sua rotina. Isto inclui fazer suas refeições só no horário que tiver vontade (no ensaio fotográfico ela quis almoçar só depois das 17h) e comer muitos gramas de chocolate, excesso que a levou algumas vezes ao hospital.
Laurinda de Jesus Cardoso sempre foi uma mulher de atitude. Nascida em um lar de humildes camponeses imigrantes de Portugal, ela descobriu aos 15 anos que queria ser atriz. A profissão era malvista na década de 40. Uma menina era criada para ser esposa e criar os filhos. Mas seu interesse por interpretar outras vidas e histórias não permitiam que o padrão da época e comentários maldosos a impedissem de seguir seu sonho. Ela enfrentava a todos, se maquiava e ia ao rádio, onde com o radioteatro tornou-se a atriz Laura Cardoso.
“Havia uma crítica por eu não seguir esse padrão. A mulher nascia para ser dona de casa, do lar. Não sei nem cozinhar. Não sei fazer comida de jeito nenhum (risos). Eu sou da rua mesmo! Falavam que a atriz era puta e o ator cafajeste. Eu enfrentei esse preconceito. Seria bobagem dizer que não. Tinha 16 anos, pintava a minha cara para ir para o rádio fazer auditório", relata.
Foi com essa mesma coragem que Laura encarou a transição do rádio para a TV e também a Ditadura Militar, entre 1964 e 1985, o único período em que a atriz temeu não poder exercer sua profissão. “Nunca pensei em desistir da minha carreira, nem mesmo quando o meu marido morreu", diz. Laura, viúva de Fernando Baleroni, com quem teve as duas filhas. Ele morreu em 1980, quando Laura tinha 53 anos.
"A profissão me preencheu. Mas na Ditadura Militar, tinha medo de trabalhar. Estava no teatro naquela época e não sabia o que podia falar, o que ia acontecer. Ditadura nunca mais! Falta de liberdade é a pior coisa que tem. Quem fala que tem saudade não sabe o que está falando”, alfineta.
Avó de Adriana, de 36 anos, e Cláudia, de 37 anos, e bisavó de Fernando, de 18 anos, Laura vê com naturalidade as transformações culturais e comportamentais nas nove décadas em que viveu. Ela afirma que considera normal ver duas pessoas do mesmo sexo demonstrarem publicamente seu amor. “Se vejo dois homens juntos se amando, ou duas mulheres, acho normal. Cada um é um mundo e pode fazer desse mundo o que quiser. Ninguém tem o direito de te censurar. Eu, hein?! O importante é buscar sua felicidade e dormir com quem você quiser. É um pecado mortal censurar a vontade do outro, o sonho dele. Desde o meu tempo de menina isso existia. Mas era mais em segredo. Hoje não é mais assim. Eu acho lindo ver dois homens de mãos dadas na rua. Por que estragar isso? Sempre fui assim, sem preconceito algum.”
À frente de seu tempo e apaixonadíssima pela profissão, Laura encontra a motivação para enfrentar horas no estúdio e meses de preparação em cada novo personagem. Ela está empolgadíssima para interpretar uma moradora de rua na próxima novela das 9, Dias Felizes, de Walcyr Carrasco. “Estou contente e ansiosa para pegar o texto. Já estou pensando como é que eu vou fazer essa personagem, como vai ser a cara dela, o cabelo, as roupas... É muito interessante. Na minha carreira, fiz quase todos os personagens que você possa imaginar, mas não me lembro de ter feito algo parecido, uma mulher de rua, que não tem nada na vida. É algo que eu nunca passei. Quero ver como vai ser. Tenho que ter aquele cuidado em observar, quero conversar com as pessoas... É um personagem bem diferente. Será um desafio enorme”, vibra ela, que interpretou a cafetina Caetana, em O Outro Lado do Paraíso (2018), em seu mais recente papel na TV.
INFÂNCIA
“Nasci no Bela Vista, no Bixiga (bairro de São Paulo). A minha infância foi toda lá. Sou filha de imigrantes portugueses maravilhosos. Eram camponeses e gente trabalhadora. Gente muito legal, boa e correta. Tive uma infância bacana. Brinquei muito nessas ruas Treze de Maio, Rui Barbosa... Brincava de roda, de subir em árvore. Tive uma avó que veio de Portugal e ela foi o meu primeiro público. Ela ficava sentada em minha frente e eu recitava para ela. Tinha uma prazer enorme ao ver que ela estava assistindo, prestando atenção, gostando. Ela foi a primeira pessoa que sentou para me assistir.”
PRIMEIRAS HISTÓRIAS
“Meu pai era camponês, mas era um homem culto. Amava a leitura. Aprendi o gosto pela leitura com ele. Pegava qualquer coisa escrita que tinha pela frente para ler. Sou uma leitora contumaz até hoje. Às vezes, tenho três ou quatro livros para começar e nem sei qual escolher. A leitura é muito importante para uma pessoa. Você descobre novos mundos. Novas vidas, novas pessoas.”
AMOR À PRIMEIRA VISITA
“Sou encantada pela interpretação. Quando cheguei no rádio, era tudo o que eu queria. Tinha muito radioteatro naquele tempo, que era a interpretação pela voz. Tinha que transmitir todas as emoções, o choro, a alegria, a tristeza, o embaraço pela voz. Fiquei feliz por fazer parte daquele elenco e de ter a oportunidade de ser uma radioatriz.”
PRECONCEITO
“Minha mãe foi contra quando falei que queria ser atriz, mas era normal há 70 anos. Era uma questão cultural das pessoas. Se você dizia, ‘sou uma atriz, trabalho no teatro ou rádio’, não pegava bem. A atriz era uma mulher não bem vista naquele tempo. Falavam que a atriz era puta e o ator cafajeste. Eu enfrentei esse preconceito. Seria bobagem dizer que não. Tinha 16 anos, pintava a minha cara para ir para o rádio fazer auditório, e a gente sentia esse preconceito. Talvez ainda hoje tenha gente que ache que os atores não prestem. Acho que a minha mãe mudou pouco a sua visão sobre a profissão de atriz. Quem tinha uma visão boa era o meu pai. Ele me apoiava. Ela sempre curtiu, mas segurou até o fim esse preconceito. Não abertamente, mas tinha. Quem via os meus trabalhos e prestava atenção era o meu pai.”
ASSÉDIO
“O assédio sempre existiu e vai existir sempre. Naquela época havia o assédio, mas acho que não era tão violento ou aberto como é hoje. Uma menina de 16 anos só por ser jovem, já era assediada. Mas dependia muito de aceitar ou não aceitar. No meu tempo era mais velado. Hoje é mais violento. Mas sofri, sim.”
DO RÁDIO PARA A TV
“O diretor da televisão, que escalava, era o Cassiano Gabus Mendes e a gente se encontrava muito na Rádio Tupi. Eu pedia: ‘Cassiano, deixa eu fazer alguma coisa na televisão?’. Um dia ele me chamou. O primeiro teleteatro que eu fiz foi um texto da Vida Alves em um programa chamado Tribunal do Coração (1952). Essa foi minha estreia. Me esforcei muito e acho que me saí bem. O texto era muito bom. Aprovaram. Não foi difícil essa transição porque quando eu fazia rádio, na minha cabeça, era como se eu estivesse representando no teatro.”
PERSONAGEM
“Tento buscar por aquela outra pessoa para criar o personagem. Vou dar cor para ela. É difícil! Quando vou para o Rio, fico em um hotel em Copa, Leme ou Ipanema, o importante é estar perto desses lugares mais movimentados. Gosto de observar as pessoas. Acho uma escola para quem é atriz observar os outros. Te dá bagagem para construir os personagens. Sou uma pessoa muito observadora de todo tipo de pessoas.”
DINHEIRO
“Eu e o Lima Duarte éramos cabeças de elenco. Éramos os atores principais. Mas naquela época, não se ganhava o que se ganha hoje. Era difícil. Passei por dificuldade financeira. Era uma vida mais modesta. Não tinha dinheiro para nada. A gente ganhava muito pouco e tinha que trabalhar muito. Dublava (Ela dava voz a Betty, do desenho Os Flintstones, na década de 60), fazia rádio, televisão... Teve uma época em que eu fiz teatro, rádio e novela junto. Era uma loucura. Chegava de madrugada em casa!”
NOVOS ATORES
“Agora a TV é uma espécie de fábrica. Você termina seu trabalho, pega a sua roupa e vai embora. Antes a gente fazia a TV ao vivo e se reunia depois para ver como tinha saído, discutir o trabalho... Era como um grupo de estudantes. O pessoal ia em uma padaria da esquina, que apelidávamos de esquina do pecado porque era onde amores começavam, outros terminavam. Havia amor, traição, raiva e ciúme... Hoje não tem isso e é uma pena. Não tem uma reunião para depois a gente saber o que o colega acha, ouvir críticas. Gosto muito de quem me critica porque aponta algo que eu posso melhorar. A análise e a crítica são boas para o ator. Hoje é difícil você ver atores sérios, que querem fazer um bom trabalho. A maioria é oba oba, principalmente na televisão. Todo mundo quer ser ator, famoso e ter uma piscina. Acho uma bosta esse pensamento. O dinheiro rege muito tudo. No meu tempo, lógico que todo mundo queria ganhar melhor, mas isso não era o foco principal. O foco era ter trabalho, chegar à perfeição.”
JUVENTUDE
“Eu amo a juventude! Amo este jovem que está começando agora, que tem os seus sonhos, esperanças... Se percebo, então, que ele tem essa mesma paixão e respeito que eu tenho pela arte, gosto mais ainda.”
FÃS
“Antes eu recebia muitas cartas. Por causa da Globo Internacional, recebi carta até da Austrália, Itália, de Portugal... Teve uma fã da Austrália que me deixou muito comovida com o que ela escreveu. Ela me mandou um desenho de um coala e eu mandei de volta um desenho de um pássaro. Agradeço muito as pessoas que me assistem, que gostam do meu trabalho, que me criticam. Se a pessoa não gostou de tal cena, me pergunto o motivo dela não ter gostado.”
VITALIDADE
“Não tenho segredo! Talvez seja o amor e respeito pelo meu trabalho e pelo dos outros. Já fiz atividades físicas, mas nada exagerado. Fazia bola ao cesto, que é o basquete de hoje, e ginástica. Hoje em dia não faço nada! Gosto de exercícios, mas a gente que trabalha em televisão, tem pouco tempo para isso. Estou mais empenhada em usar meio tempo livre para estudar texto e criar. Sou muito indisciplinada para comer. Como pouco e só na hora que tenho vontade. Não tenho essa de meio-dia é almoço... Não bebo nada, meu organismo não aceita. Às vezes, tomo uma taça de vinho, mas muito pouco. Agora chocolate como muito e, algumas vezes, até passar mal.”
VAIDADE
“Faço sempre limpeza de pele e uso creminhos. Mas botox e plástica nunca fiz! Tinha gente que falava: ‘por que você não faz uma plástica?’. Eu amo a minha cara, minhas rugas, não sou perfeita e bonitinha. Nunca quis ser bonitinha. Sempre quis ser a melhor no meu trabalho. Até porque acho que todo mundo tem a sua beleza. O que é feio? Não sei! Feio é não ter saúde, não ter uma vida que você ama, é você não ter quem você quer, não dormir com quem você quer... Eu não sou bonitinha. E não estou nem aí! Mas amo a cara que tenho. Tenho os olhos expressivos.”
CASAMENTO
“Nosso encontro foi na Tupi, na época em que a gente fazia o radioteatro. Ele era um homem muito inteligente e agradável. Uma pessoa bonita e boa. Foi meu grande amor. Quando ele morreu, a carreira me preencheu. O trabalho foi maravilhoso. Não pensei em desistir porque sei que trabalhar é maravilhoso!”
SEXO
“Acho que depois dos 60 anos a pessoa não morre. A gente quer continuar amando, dormindo com o homem que quiser. Só que ficamos mais seletivas. Apesar de que acho que faz parte os erros nesse caminho do amor. Mas depois que o meu marido morreu, não me interessei do mesmo jeito por mais ninguém. O amor da minha vida era o trabalho mesmo.”
MATERNIDADE
“Nunca consegui ir a uma reunião de escola das minhas filhas. A minha mãe botava elas na cama e ela cuidou delas para mim. Mas acho que essa união que tenho com elas vem do amor que sempre demonstrei. Quando estava com elas era muita atenta. Sempre prestei muita atenção na saúde delas e na escola.”
TEMPO LIVRE
“Gosto muito de ler. O cinema também é uma outra paixão! Durmo bem tarde. Amo a madrugada! Algumas vezes também saio para encontrar as amigas.”
REDES SOCIAIS
“Não gosto! Se eu tenho mil seguidores é porque eu sou boa atriz? Se o outro, mesmo sendo melhor ator do que eu, não tiver tanta gente seguindo ele não é a melhor opção para o papel? Não entendo e nem sei mexer nisso. Nem WhatsApp eu tenho.”
MEDO
“Brinco com as minhas filhas que só tenho medo do fantasma. Mas não tenho medos, nem da morte. É uma besteira ter medo da morte! Ela é imprevisível, mas inevitável. A gente não sabe quando ela vem, mas que ela é certa para todo mundo, ela é. Só não diz a hora que vem. Amo a vida, agradeço a Deus por ter chegado a essa idade, mas a gente um dia vai embora.”
SONHO
“De verdade, é continuar fazendo bons personagens no teatro, cinema e televisão. Foi, é e vai ser sempre o sonho da minha vida. Sempre sonhei em ser a melhor! Eu levo muito a sério! A paixão por representar e por descobrir novos personagens me motiva a levantar da cama todos os dias. Sempre tem mais um personagem para descobrir e quem eu gostaria de interpretar.”
CRÉDITOS:
Fotos: Angelo Pastorello
Beleza: Leo Almeida
Styling: Rafael Menezes